ESCOLHAS
Magro que só, embarcou no "busão" lotado na Avenida São João.
Dentre tantos passageiros que se amontoavam no coletivo, estava a garota por quem se interessaria. Embarque premeditado!
- Sua missão será acompanhá-los mas sem interferir. Nenhuma interação lhe será permitida – me disse uma voz feminina, vinda não sei de onde.
- Quem é você? Onde você está? – perguntei em pensamento, meio assustado.
- Cada coisa a seu tempo. Esses dois que você vai acompanhar te escolheram, e, por ora, está autorizado a conhecer um pouquinho dessa jornada que se inicia para eles.
- Me escolheram? Para quê? – perguntei sem qualquer retorno...
Vou confiar naquela voz.
Seja o que Deus quiser então!
Troca de olhares entre os dois, um oi aqui, outro ali.
O interesse me parecia mútuo.
Se apresentaram!
Não tardou para que o namoro entre o rapazola de 18 e a garota de 14 anos de idade, começasse.
- Serão seus pais em breve! – a voz voltou do nada e disse naturalmente como se eu tivesse free pass entre passado e futuro.
Atônito, perdi o chão por uma centena de segundos...
Sensação de já ter visto esta coisa do futuro visitar o passado...em filme, talvez.
Os dias se passavam e ambos estavam felizes!
Logo conheceram as famílias!
Todos os rostos me pareciam familiares.
Ele ganhou quatro cunhados e ela, dez!
Televisão não era uma opção de entretenimento.
- Catorze tios de sangue garoto! Todos se casando, serão 28... Sem contar os primos. A família será imensa! – divertiu-se a voz.
Vou precisar nascer várias vezes para conhecer a todos! - pensei.
Às vezes, eu os acompanhava individualmente!
Ora na loja de foto em que mamãe trabalhava, ora caminhando por quilômetros atrás de papai, em sua labuta de vendedor, que por sinal, era um especialista.
Noivaram!
Burburinho na rua do trabalho da mamãe!
Quem é aquele senhor gordinho de chapéu e rodeado de gente? Parecia uma celebridade. Me aproximo para ver o que está acontecendo, sem sucesso.
Hora do almoço, mamãe e uma amiga deixam a loja. Mamãe é parada por ele. Elegantemente trajado e bem mais velho que papai.
Do estranho, recebe um cartão de visitas que educadamente guarda em sua bolsa, sem dar muita atenção às meia dúzias de palavras proferidas.
O homem a abordou várias vezes ao longo dos dias que se seguiram. Ainda que frequentes, as abordagens galanteadoras, eram respeitosas.
Ora fazia ouvidos moucos, ora mostrava-lhe o dedo dizendo:
“Sou noiva”! - o dedo mostrado, obviamente, era o anelar direito.
Na volta do almoço, rasgou o cartão e o descartou.
Curioso que só, fui ao cesto de lixo.
Meu Jeová!!!
Assis Chateaubriand era o dono do cartão!
Andei por uns dias atrás dele.
Magnata das comunicações da época, entre outras coisas, foi o grande influenciador de seu tempo! O homem que trouxe a televisão para o Brasil!
“Só” isso e mais um pouco!
Ah como o amor é lindo! Só ele para justificar certas escolhas...
Voltei ao casal de plebeus!
O magrelo não teve vida fácil!
Mãos dadas era o máximo permitido pra época.
Beijos! Só às escondidas, caso contrário alguém não comeria o perú no Natal, e consequentemente, meu nascimento estaria em risco.
Marcação implacável imposta por aqueles que, no futuro, eu chamaria de vovô e titio.
Casaram-se em 08 de dezembro de 1965!
- Bem, agora que você já se divertiu um pouquinho, vamos conversar? – eu finalmente conheceria a dona daquela voz que mandou e desmandou em mim!
Beleza encantadora! Rosto delicado, cabelos escuros até os ombros e uma doçura no olhar.
Prosseguiu:
- Saiba que está sendo muito aguardado por eles. Você também os escolheu em determinado momento. E já que falei em escolhas...! - continuou -
Fará inúmeras ao longo da vida. Cada uma delas trará consequências. Acertará em algumas, errará em outras. Mas todas necessárias para sua evolução.
Como todo primogênito, carregará um fardo mais pesado.
Serás pai também e quando isso acontecer, entenderá muitas coisas que não terá entendido como filho.
Faça com seus filhos, melhor do que eles farão contigo.
Está pronto? – perguntou tocando meu rosto, me causando enorme bem estar.
- Sim...eu acho...Você vai continuar me orientando daqui? Eu a verei de novo? – tão incrível quanto inexplicável, era o bem estar que eu sentia ao seu lado.
Com um lindo sorriso, me respondeu:
- Você terá um orientador designado por Deus, chame-o de anjo da guarda, mentor, pode lhe dar um nome qualquer....mas não serei eu!
Quanto a me ver... - apesar do suspense, deu um spoiler:
- Irei em seguida, mas não se lembrará de mim. Estará no seu quinto ano de vida. Seremos irmãos por exatos 23 dias...
Agora entendi o porquê me sentia bem ao seu lado.
- ... volto para missões de acolhimento aqui, até o dia em que Deus me mande ao convívio de vocês novamente.
E continuou...
Por muito tempo, a ideia de que fui vítima de um erro médico, permeará vossos corações. O médico será apenas um instrumento da vontade do Pai.
No momento oportuno, entenderão que eu teria partido, mesmo sob os cuidados dos melhores profissionais da Terra.
Sentirá minha falta toda vez que um casal de irmãos cruzar o seu caminho. Neste momento, também sentirei a sua. A ordem natural da vida será quebrada e uma ferida de difícil cicatrização será aberta no coração dos nossos pais. Mas precisarão desse momento de dor para evoluírem, assim como eu. A saudade vai bater tanto lá como cá.
Não tardará para que vocês encham o coração deles de alegria, com a multiplicação familiar, mas grandes problemas também farão parte desta existência.
Escolhas, lembra?
E finalizou:
Saiba que os amo muito, mesmo aos que chegarem depois de mim.
Estaremos juntos, para sempre!...
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2020!
- Sr. Marcos, por favor! O elevador está aqui atrás, à sua direita. O senhor desce ao 2° subsolo, um enfermeiro o espera para lhe dar as instruções. Meus sentimentos!