APOTEOSE

Avaliação 0.00 (0 Votos)

APOTEOSE

- Sr. Marcos, por favor!


Levantei-me da cadeira com as pernas bambas. Caminhei até a moça que me chamava, tentando segurar o choro.
Sensação como esta, só quando a prô de matemática chamava aluno por aluno até sua mesa para entregar a prova corrigida.


Hoje, os tempos de escola se transformaram “num nada”.


A moça prosseguiu:
- O elevador está aqui atrás, à sua direita. O senhor desce... – e neste momento, eu já não ouvia mais as instruções, fui guiado pelo instinto.


Eu poderia ter chegado lá e ouvido:
- Pensaram que se livrariam de mim né? O Pedrão não me quer ... - frases em tom jocoso que o caracterizavam. Também nos irritavam por vezes, ao soarem como desdém à vida.


Saí do elevador e virei à direita.
Dois ou três metros à frente talvez, um caixão aberto e vazio sobre uma estrutura com rodinhas. 


- O mais em conta por favor! Taí um presente que não carece ostentação – pedíamos 20 dias antes, já nos programando para aquele momento que ninguém está preparado, por mais que se prepare.


O caixão esperava um corpo. O corpo a ser reconhecido em alguns minutos.
Ajudado por um enfermeiro, calço as luvas de borracha e um avental descartável em frente à porta onde se lê: morgue.


- Por favor, seja rápido, não se pode ficar muito tempo – orientou.


A antiga mortalha roxa fora substituída por um saco plástico branco que o envolvia. Não menos chocante, seria assim nosso último encontro.
Me posiciono no ambiente nada acolhedor enquanto o Cristiano, da empresa funerária abre o zíper na altura da cabeça.


Sim! Era o cara que entrou e saiu diversas vezes de hospitais, divertindo médicos e enfermeiros com sua capacidade de fazer piadas em momentos adversos.
- O senhor vai ter vida longa “Seu” Heitor - diziam.
Teve o tempo que necessitava.


Sob um olhar alopático, poderia ter ido mais longe, não tivesse se descuidado um pouco.
Força que precisávamos trocar, eu e Fabião passamos aquela tarde juntos no hospital. Vimos juntos também o momento em que o carro funerário dobra a esquina lentamente sumindo de nossas vistas, sem despedidas, como manda o protocolo às vítimas da Covid.


Triste a sensação de ver partindo solitário, alguém que por muitos anos te colocou no carro para levá-lo à escola.
Assim o descrevi para minha mãe e meus irmãos: Um pouco machucado, consequência da intubação, mas sereno como quem finalmente descansara.


Dentre algumas coisas boas trazidas por esta doença, destaco a proibição de funerais.
Quanto maior uma família, maior a quantidade de eventos dessa natureza. Particularmente, participei de muitos desde a infância.
No entanto, há alguns anos questiono a necessidade disso.


Ao experimentar na própria pele, passei a ter condições de opinar.
Dores são sentidas de formas diferentes, claro, mas para mim, não vê-lo exposto sobre uma mesa por intermináveis horas, faz com que eu me lembre, como se estivesse viajando, sem paradeiro. O trauma do reconhecimento do seu corpo, não fez morada em meu coração.


A fase dolorida está passando, a da saudade, será eterna.

Peguei papai no colo.
Pesado, trouxe para a minha casa e o camuflei entre objetos.
Talvez seus netos não entendam ainda como que o vovô, daquele tamanho todo, pôde caber dentro de uma caixinha de madeira.


Já diria o sábio: “Na natureza, tudo se transforma”!
O físico ficará ali, esperando o momento para a última homenagem: “desfilar” na Sapucaí e no Anhembi durante a folia de Momo.
Seu espírito, se puder, já deve estar frequentando rodas de sambas por aí afora.

Anterior

ÉRAMOS SEIS

Histórias da nossa infância na querida vilinha!
Próximo

ÉRAMOS SEIS

Histórias da nossa infância na querida vilinha!